segunda-feira, 7 de junho de 2010

A PIDE e o passeio ultramarino




   "Nasci em meio rústico e humilde, amando o milagre da vida e o mistério fascinante da Natureza de abrangência imediata e o firmamento incomensurável: parecia vaguear no mundo dos fenómenos.

          Uma curiosidade contínua acossava-me a todo o momento: isto é um puro mundo mecânico onde, embora patente uma beleza indiscritivel, faltando coordenadas extra-mecânicas, como a Justiça e o Bem?

          Ou seres superiores, funcionando em campos de frequência indetectável e matéria não convencional, não seriam os arquitectos deste milagre ilimitado, com leis intelegentíssimas, onde estivesses patentes a imanência moral e um sentimento profundo da vida, para além de explicações meramente académicas?

          Fui crescendo com anseios de verdade, necessidade de expansão e de transcendência de dúvidas, que permitissem desenquadrar-me de horizontes chocarreiros e frustração essencial. Uma compulsão, incitava-me a procurar a verdade e funcionava como fermento de crescimento e factor de algum amadurecimento.

          Fiz a primeira comunhão solene, na igreja da terra natal, Pinheiro de Ázere (S. Comba Dão), tentando perscrutar o significado do conteúdo do grosso catecismo vigente. Embora exigente, tinha fé infantil com pouca mácula de dúvida até ao dia em que eventualmente viesse a compreender. Anos volvidos, apareceu na freguesia, um padre, Aires Mendes da Silva, natural de Carvalhal Redondo (Nelas), cuja primeira medida foi aumentar a congrua pascal. Meu pai e alguns outros paroquianos não concordaram, mas desejando sempre pagar a mesma sem tal aumento. O padre, não aceitando, levou a que meu Pai deixasse de a pagar. Eis que o mesmo, em pleno púlpito, começa a invectivar e a nomear os não conformados, criando clima de crispação.

          Daqui derivaram problemas pessoais, esboçando-se um mau relacionamento entre ambos, o que deu azo a que os meus progenitores, desencantados, começassem a frequentar o culto evangélico, vulgo protestante.

          Com muito esforço familiar, fiz o curso geral dos liceus (antigo 5ºano) pagando 200$ de mensalidade até ao 3º ano e como foi depois pedido um aumento para os 300$, meu Pai matriculou-me noutro colégio a 16km de distância, tendo de fazer o percurso de 32km de ida e volta, de bicicleta. Em 1948, meu Pai, ganhando 1000$, pelo que um terço era para o colégio, contando só a mensalidade e não material escolar.

          Mais tarde, já como trabalhador-estudante, fiz o antigo 7ºano no Liceu Camões, o 2ºano de Engenharia na Faculdade de Ciências, de onde transitei para o IST (Alameda), onde por 3 disciplinas não terminei a licensiatura.

          Findo o 5º ano dos liceus, consegui emprego em Aveiro, dois ou três anos depois, no Banco Português do Atlântico, por diligência e amabilidade de uma pessoa amiga, tendo lido o cartão do gerente bancário para me apresentar ao serviço na semana seguinte. Entrei em euforia e tratei da minha emancipação, pois tinha 19 anos e na altura a maioridade atingia-se aos 21 anos oficialmente e não aos 18 como actualmente. Mal sabia que era o principio de um penoso e estigmatizante processo que só “in extremis” não me levou para o Tarrafal, considerando-me hoje um vivo acidental.

          Com efeito, o padre em causa, sabendo da notícia do banco, dirigiu-se sem mais delongas a Aveiro, em carro que houvera comprado pouco depois da sua chegada à freguesia, para me denunciar ao gerente do banco que deixei de ir à missa e seria, de certeza, comunista. E foi uma vez uma admissão a um banco: o assunto ficou bloqueado em defenitivo. Que tirasse os cavalinhos da chuva, pois enquanto não voltasse à missa, não seria nem funcionário público nem bancário. O desespero, a indignação e a vergonha apossaram-se de mim. E, como desde criança nunca tive propensão para rastejar e ser subserviente, fui à residência do pároco perguntar-lhe por que me perseguia e se era... ministro de Deus ou do Diabo! Bem, o que fui dizer! Para o seu ego inchado e de pouca humildade cristã, aquelas palavras soaram aos seus ouvidos como grave injúria à sua intocável pessoa.

          E lá vai ele, desta vez a Viseu, queixar-se ao velho bispo de então, D.José da Cruz Moreira Pinto, de que eu o tinha ofendido. E as correias de transmissão não paravam. O prelado, por seu turno, oficia para a Inspecção da PIDE em Coimbra, na R.Alexandre Herculano, 14, dando nota de que tinha ofendido gravemente um seu sacerdote. Dias depois, dois elementos da GNR de Santa Comba, vieram buscar-me coercivamente para o posto, dizendo-me que estavam lá uns senhores da PIDE que me queriam falar. Vim a saber tratar-se dos inpectores Leitão Bernardino e Barreto Schetti, levando-me para a cela em Coimbra, submetendo-me a interrogatórios sem fim, de asunto políticos de que nunca tinha ouvido falar, e que confessasse, pois seria melhor, além de ir ser submetido a um processo canónico no patriarcado de Lisboa (então, o Cerejeira), e a seguir ia dar... um passeio ultramarino...

          Com a história do processo canónico fiquei transido e esmagado, mas se soubesse ser o passeio ultramarino ida para o Tarrafal, não sei como reagiria.

          Estava-se a dois dias de seguir para Lisboa, quando na minha aldeia aparece outro inspector da PIDE que fazia serviço de fronteiras no Ultramar e que vinha de férias. Meu pai em polvorosa dirige-se a ele e pede-lhe “António levaram o meu Henrique e não sei o que vai ser”. Este, sabendo do que se tratava, dirige-se de imediato a Coimbra para falar com os colegas, dizendo para me soltarem imediatamente, visto nada e tratar de política, tendo o assunto tido origem apenas numa quezília pessoal por causa de uma congrua. No dia seguinte, o Sachetti chamou-me e, sem mais explicações, disse-me “Vá-se lá embora e não se meta noutra”.

          Lá vim eu de comboio para Santa Comba, tendo chegado ao povo, acabrunhado, com raiva sem limites como marcado por ferrete. Se este novo dado não tivesse surgido, a minha adolescência teria deaparecido, do reino dos vivos. Esta história da PIDE, teve ainda consequências futuras funestas. Assim...

          Quase como Maria Papoila, sem o mínimo desejo de voltar à terrinha e envergonhando-me de falar de Santa Comba, fui para Lisboa empregando-me ora como dactilógrafo, escriturário ou orçamentista de funerais. Um dia inscrevi-me num concurso para assistentes de programas literários da ex-Emissora Nacional. O curso prévio de formação saiu oneroso. Com baseem textos elaborados pelos formandos sobre temas específicos, de dois explicadores foram unânimes em confidenciar-me que, em função do meu desempenho, seria dos primeiros classificados. Saída a lista das aprovações, o meu nome nem sequer constou.

          A seguir concorri para a função pública – 3º oficial da Direcção-Geral da Aeronáutica Civil. Novamente, um dos formadores (Dr. José Mendonça) assumiu perante o grupo de explicandos ter sido eu que melhor desempenho tive numa dissertação sobre o tema. E novamente fui contemplado com a inexistência do meu nome na lista final dos aprovados. E as dúvidas sobre a razão destes infortúnios desapareceram quando, tempos depois, o director administrativo da antiga SACOR, me observou “ó enhor Pereira dos Santos, o senhor teve em tempos, pelo que vejo aqui no seu processo de admissão, um problema na PIDE com um padre, mas em consequências, não foi?”... Aflorava em pleno a razão dos insucessos havidos: no processo de cada candidatura era apenas uma declaração da PIDE, e, afinal, em Coimbra, o processo mesmo arquivado, não obstou a que lá ficasse uma referência residual.

          Voltando À Aéronautica Civil, a verdade é que entrei mesmo, extra-concurso! Ora vejamos: um dia enamorei-me, lei natural da vida, com uma jovem do Bairro da Estação do Vimieiro, a quem fui desfiando as minhas amarguras sem fim, e as desilusões nos meus concursos à função publica e ela, de imediato, com uma ... certeza que me deixou estupefacto, escreveu-me a dizer que não havia problema nenhuma se quisesse mesmo entrar: que pediria à Dona Marta Salazar um cartão de recomendações, bastando dizer a quem pedir, que a Senhora era madrinha de baptimo da mãe (minha futura sogra). E esta, hein? Bem, pensei, pedir é rastejante e eu nem sequer pedia, era-me oferecido, mas tendo já sido tao injustiçado, aceitar a proposta seria de algum modo, uma pequena reparação das injustiças que vinha sofrendo na pele. E, decorridos cerca de 15 dias, entrava ao serviço da Repartição de Segurança Aérea da DGAC.
 Depois transitei para a PETROGAL. Mostrei-me grato à Senhora, sem subserviência ou vendido como macaco à banana, mantendo sempre a minha oposição ao totalitarismo vigente.

          Terminando, é mais que pena que um simples cartãozinho de recomendação tenha mais força que todas as academias. Segundo: não se deve viver refém do passado, pois a vida nao deve estancar mas fluir em busca das alturas. Outra coisa é nao relegar ao esquecimento a tirania para reflexão dos vindouros. A história daquele rapazinho que esteva na iminência de ir para o Tarrafal e aí deixar a vida, por causa de uma simples congrua, é um enéimo de um universo ombrio de atentados À integridade de moral e física de cidadão perpetrados por ditadores e canalhas sem qualquer legitimidade popular, usurpando um poder que não lhe foi concedido."



H.Pereira dos Santos